Íntegra da entrevista com o juiz José Antonio Daltoé Cezar

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Íntegra da entrevista com o juiz José Antonio Daltoé Cezar


O que motivou a criação do projeto Depoimento sem Dano?

A idéia surgiu de leituras e inquietudes particulares. Sou juiz desde 1988, e desde então, via que não tínhamos qualquer preparo para receber depoimentos de crianças e adolescentes que passaram por situações de violência, especialmente sexual.  Sempre me interessei pelo papel da psicologia, inclusive fazia parte de um grupo de juizes que se encontrava quinzenalmente com psicanalistas para debater situações que passamos no trabalho. Esse grupo durou cinco anos, e muito do que aplicamos hoje veio desse encontros. Desde que li a obra Abuso sexual: a inquirição das crianças, uma abordagem interdisciplinar, de autoria de Veleda Dobke, tive a certeza de que no Brasil as coisas não eram feitas da forma adequada. Foi assim que, desde 2003, começamos o projeto no Rio Grande do Sul. O projeto não tinha apoio institucional do TJ-RS até 2004, era mantido com recursos particulares de quem acreditava no DSD. Hoje o estado já conta com 1.500 depoimentos feitos nesse molde.


Em que consiste o projeto?

É uma idéia muito simples: retirar a criança e o adolescente do contato direto com os possíveis agressores na sala de audiência e colocá-los em uma sala separada, com circuito de áudio e som e um ambiente lúdico. A criança é acompanhada por um técnico capacitado – psicólogo ou assistente social – que repassa as perguntas dos juízes, promotores e advogados de defesa de forma adaptada.


E como seria essa adaptação?

Usamos a entrevista cognitiva, um método que tem sua origem no Reino Unido. Ele é baseado no respeito às limitações do depoente, deixamos que ele se manifeste como quiser. Tem crianças que chegam aqui e falam “Não quero depor hoje, só amanhã” e temos que respeitar. No DSD dá-se um maior tempo de resposta e evita-se a elaboração de perguntas diretas, para que as respostas não sejam induzidas. Tudo isso porque, se o depoimento for mal tomado, não vai valer nada.
Hoje em dia a criança é ouvida muitas vezes, seja pelo Conselho Tutelar, Ministério Público, Polícia ou Instituto Médico Legal, e cada processo traz uma conseqüência emocional. No nosso método, o fato de o depoimento ser gravado permite que ele possa ser consultado e analisado posteriormente, além de produzir provas materiais contra o acusado. Ao contrário do laudo psicológico, o depoimento gera a produção antecipada de prova antes mesmo do ajuizamento da ação. Dessa forma, a criança é ouvida o menor número possível de vezes e em tempo próximo ao fato.


Quais os principais resultados obtidos até hoje?

O principal é que o DSD aumentou o índice de responsabilização de 3% para 59% do total das denúncias, mas há outros dados curiosos. Depois de cinco anos, descobrimos que as crianças gostam de vir a juízo, ao contrário dos adultos, que fazem o que podem para evitar a sala de audiência. Antigamente a duração do testemunho da criança ou do adolescente não passava de 10 minutos, mas com o novo método eles se sentem confortáveis para falarem até meia hora. Outra coisa interessante é que cerca de 70% das crianças e adolescentes ouvidas pelo DSD sentem-se valorizados pelo juiz e ao final do depoimento manifestam espontaneamente a vontade de conhecê-lo.

Acredito que o maior exemplo de aprovação do nosso trabalho é que atualmente outras cidades já adotaram ou estão implantando o DSD, como Brasília (DF), Cuiabá (MS), Goiânia (GO), Natal (RN), Porto Velho (RO), Rio de Janeiro (RJ), Rio Branco (AC) e Serra (ES).


Qual a opinião do Sr. a respeito da polêmica gerada sobre o tema, especialmente por alguns grupos de psicólogos?

O trabalho interdisciplinar nem sempre é fácil, mas precisamos respeitar o espaço do outro. Algumas facções declaram que o DSD não é ético, mas acredito que essa é uma questão ideológica. Vale lembrar que pela Convenção Internacional Sobre os Direitos da Criança e do Adolescente a criança e o adolescente têm o direito de serem ouvidos nos processos que lhe dizem respeito. Enquanto muitos ignoram o que eles dizem, o juiz dá validade às suas palavras.

No mundo menos de 10% das crianças e adolescentes quebram o silêncio sobre alguma situação de violência sexual. Por muito tempo não se quis ouvir essas vítimas com o argumento da proteção, mas a verdade é que muitos sequer agüentam ouvir o que elas têm a dizer.


Em que lugares do mundo esse tipo de depoimento é adotado?

Os modelos mais antigos são da Inglaterra e da África do Sul. Apesar de ser um assunto recente, abordado com mais freqüência há não mais de duas ou três décadas, hoje o depoimento diferenciado de crianças e adolescentes é uma prática que já existe em países como Chile, Bolívia, Israel, Grécia e Argentina. Muitos desses países, inclusive, contam com uma legislação de respaldo. 
No Brasil, os trabalhos da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Exploração Sexual (2003/2004) resultaram no PLC 35/07, de autoria da deputada Maria do Rosário (PT/RS). O projeto de lei regulamenta o depoimento de crianças e adolescentes propondo alterações no Código de Processo Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Atualmente, o processo aguarda tramitação no Senado e a relatora é a senadora Lúcia Vânia (PSDB/GO).